segunda-feira, 24 de novembro de 2014

1 - Factos a Considerar Acerca do Vinho no
NOVO TESTAMENTO


Muitos cristãos sinceros crêem que nada está intrinsecamente mal no uso moderado de bebidas alcoólicas. Afinal, dizem eles, Cristo fez vinho fermentado nas bodas de Caná; aprovou o álcool na parábola do vinho novo em odres novos; admitiu que usava álcool ao descrever o seu estilo de vida («come e bebe»); e ordenou o seu uso até ao fim do tempo quando instituiu o cálix da Ceia do Senhor. Sem rodeios, estes cristãos sentem que: «se Jesus bebia vinho, também eu o posso beber»!
Dado que o exemplo e os ensinos de Jesus são normativos para a crença e a prática cristãs, examinemos brevemente estes episódios e ensinos de Jesus relacionados com o vinho.


AS BODAS DE CANÁ

O «vinho bom» que Jesus fez em Caná (João 2:10) era «bom» devido ao elevado teor alcoólico? Muitos cristãos assim o crêem, baseados em 3 pressupostos:
1º - Supõem que os judeus não sabiam como impedir que o sumo de uva fermentasse naturalmente com o tempo. Dado que as bodas ocorreram logo antes da festa da Páscoa (ver João 2:13), isto é, 6 meses depois das vindimas, concluem que o vinho usado em Caná deve ter sido fermentado.
2º - Supõem que quando o mestre-sala descreveu o vinho provido por Jesus como o «melhor» (João 2:10, NIV), ele se refere a um vinho alcoólico de alta qualidade.
3º - Supõem que quando o mestre-sala fala de convivas que «já têm bebido bem» (João 2:10), quer dizer que estavam intoxicados por um uso excessivo de um vinho fermentado.
Consequentemente, argumenta-se, o vinho que Jesus fez deve ter sido fermentado.

Examinemos cada uma destas três suposições:

A - Sabia-se no tempo de Jesus como impedir que o sumo de uva fermentasse? Testemunhos do mundo romano do tempo do Novo Testamento descrevem vários métodos para preservar o sumo de uva. Na realidade, a preservação do sumo de uva não fermentado era sob alguns aspectos um processo mais simples do que a preservação do vinho fermentado. Assim, não há necessidade de supor que o «vinho» usado nas bodas de Caná tinha de ser fermentado pela simples razão de as bodas ocorrerem perto da época da Páscoa, alguns meses depois das vindimas. O sumo de uva podia ser conservado sem fermentar durante todo o ano.

B - A 2ª suposição é baseada no gosto dos bebedores do século 20 que definem o vinho como sendo «bom» em proporção do seu teor alcoólico. Mas isso não era necessariamente verdade no mundo romano do Novo Testamento em que os melhores vinhos eram aqueles cuja potência alcoólica tinha sido removida por meio de fervura ou filtragem. Plínio, por exemplo, diz que «os vinhos são utilíssimos quando toda a sua potência foi removida pela filtragem». 1
Semelhantemente, Plutarco afirma que o vinho é «muito mais agradável para beber» quando «nem inflama o cérebro nem infesta a mente ou as paixões» 2 porque a sua força foi removida por meio de frequente filtragem.
O Talmud proíbe beber álcool ao som de instrumentos musicais em ocasiões festivas como as bodas. 3 Esta proibição é confirmada pelo testemunho ulterior dos rabis. Por exemplo, S. M. Isaac, um eminente rabi do século 19 e editor de The Jewish Messenger, diz: «Os Judeus, nas suas festas de carácter sagrado, incluindo a festa de casamento, nunca usam espécie alguma de bebidas fermentadas. Nas suas oblações e libações, tanto privadas como públicas, empregam o fruto da vide – isto é, uvas maduras, sumo de uva não fermentado, e passas de uva, como símbolo de bênção. A fermentação para eles é sempre um símbolo de corrupção». 4 Embora as fontes judaicas não sejam unânimes sobre a espécie de vinho que deve ser usado nas festas sagradas, a afirmação do rabi Isaac indica que alguns Judeus recusavam permitir vinho fermentado nas festas de casamento.

C - Os que crêem que as palavras «quando já têm bebido bem» (João 2:10) indicam que os hóspedes das bodas estavam intoxicados e que assim o «bom vinho» fornecido por Cristo deve também ter sido intoxicante, interpretam e aplicam mal o comentário do mestre-sala – e passam por alto o uso mais amplo do verbo. O comentário não se refere especificamente aos participantes das bodas de Caná, mas à prática geral entre os que dirigem festas: «Todo o homem põe primeiro o vinho bom; e quando já têm bebido bem, então o inferior» (João 2:10). Esta observação refere-se ao costume de um mestre-sala alugado e não ao estado de intoxicação de um grupo particular.
O verbo grego, methusco, traduzido nalgumas versões por embriagar-se pode também significar «beber bem», «beber à vontade», sem qualquer implicação de intoxicação. No Theological Dictionary of the New Testament, Herbert Preisker observa que «methuskomai é usado sem qualquer conotação ética ou religiosa em João 2:10 em relação com a regra de que o vinho inferior é servido apenas quando os hóspedes já têm bebido bem». 5
A expressão «têm bebido bem», em João 2:10, é usada no sentido de saciedade. Refere-se simplesmente à grande quantidade de vinho consumido num banquete, sem qualquer referência aos seus efeitos intoxicantes.

Os que insistem que o vinho usado nas bodas era alcoólico e que Jesus também forneceu uma grande quantidade de vinho intoxicante, são levados à conclusão de que Ele assim fez para que os que participavam nas bodas pudessem continuar a satisfazer o seu desregrado apetite. Não destruiria isso a integridade moral do carácter de Cristo?
A coerência moral exige que Cristo não podia ter miraculosamente produzido cerca de 500 litros de vinho intoxicante para ser usado por homens, mulheres e crianças reunidos nas bodas sem se tornar moralmente responsável pela sua intoxicação?


O que Cristo produziu foi sumo de uva fresco, não fermentado. O próprio adjectivo que João usa para o descrever, kalos, denota o que é moralmente excelente, em vez de agathos, que significa simplesmente bom.
6


VINHO NOVO EM ODRES NOVOS

Os que crêem num uso moderado de álcool aduzem a declaração de Cristo de que «o vinho novo deve deitar-se em odres novos» (Lucas 5:38; Mateus 9:17; Marcos 2:22). «Vinho novo», dizem eles que deve denotar vinho recentemente prensado mas já num estado de fermentação activa. Jesus disse que esse vinho só podia ser posto em odres novos porque odres velhos romper-se-iam sob tal pressão.
Esta interpretação popular está baseada na imaginação, mas não nos factos. Os que estão familiarizados com a pressão causada pela fermentação produtora de gás sabem que nenhum recipiente, quer de pele quer de vidro pode resistir à pressão do vinho novo em fermentação. Como observa Alexander B. Bruce, «Jesus não estava a pensar de maneira alguma em vinho fermentado, intoxicante, mas em mosto, uma bebida não intoxicante, que podia ser conservado com segurança em odres novos, mas não em odres velhos que já tinham contido vinho ordinário, porque as partículas de matéria albuminóide aderentes ao odre causariam fermentação e desenvolveriam gás com uma enorme pressão». 7
O único «vinho novo» que podia ser armazenado em odres novos era o mosto depois de ter sido filtrado ou fervido. Columella, o célebre agriculturista romano contemporâneo dos apóstolos, confirma que «uma ânfora de vinho novo» era usada para conservar mosto recente num estado não fermentado: «Para que o mosto possa permanecer sempre doce como se fosse recente fazei assim: Antes de o bagaço ser espremido, tomai da tina algum mosto do mais fresco possível e ponde-o numa ânfora nova (amphoram novam) de vinho, e em seguida pintai-a toscamente e cobri-a cuidadosamente com pez, para que assim nenhuma água seja capaz de penetrar». 8

Esta interpretação é ainda confirmada pelo sentido simbólico das palavras de Cristo. A imagem do vinho novo em odres novos é uma parábola da regeneração Como Ernest Gordon explica, «os odres velhos, com as suas borras alcoólicas, representavam a natureza corrupta dos fariseus. O vinho novo do evangelho não podia ser posto neles. Eles o fermentariam. 'Eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores, ao arrependimento.' Os últimos pela sua conversão tornavam-se novos vasos, capazes de reter o novo vinho sem o estragar (Marcos 2:15-17, 22). Assim, comparando o vinho intoxicante com o fariseísmo degenerado, Cristo claramente deixou entender qual era a Sua opinião acerca do vinho intoxicante». 9
Gordon continua: «Será bom notar como nesta ilustração casual, Ele (Cristo) identifica inteiramente o vinho, com o vinho não fermentado. Nenhum reconhecimento é dado ao vinho fermentado. Podia ser posto em qualquer espécie de odre, por mais desprezível e corrompível que fosse. Mas o vinho novo é como pano novo que é bom demais para ser usado como remendos. É algo de puro e saudável, requerendo um recipiente limpo.
A maneira natural como esta ilustração é usada sugere pelo menos uma compreensão geral e corrente por parte dos Seus ouvintes judeus de que o verdadeiro fruto da vide, o bom vinho, não era fermentado». 10


ERA JESUS UM COMILÃO E BEBEDOR DE VINHO?

Respondendo a acusações dos dirigentes religiosos do Seu tempo, Jesus disse: «Veio João Baptista, que não comia nem bebia vinho, e dizeis: Tem demónio; veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizeis: Eis aí um homem comilão e bebedor de vinho» (Lucas 7:33, 34). Alguns crêem que a descrição feita por Jesus do Seu estilo de vida como «comendo e bebendo» significa que Ele abertamente admitia que usava vinho alcoólico. Além disso, argumenta-se, Jesus deve ter bebido vinho alcoólico para os Seus críticos O acusarem de ser um «bebedor de vinho».
Esta interpretação ignora várias considerações importantes. Jesus usou idiomaticamente a frase «que come e bebe» para descrever a diferença entre o Seu estilo de vida social e o de João Baptista. Veio João, que «não comia pão nem bebia vinho», mas de Si próprio, Ele simplesmente disse: «Veio o Filho do homem, que come e bebe». Se Jesus tivesse desejado tornar claro que, ao contrário de João Baptista, ele era um bebedor de vinho, podia ter repetido a palavra vinho para ênfase e clareza.

Inferir que Jesus deve ter bebido vinho por os Seus críticos O acusarem de ser um «bebedor de vinho» significa aceitar como verdade a palavra dos Seus inimigos. Em duas outras ocasiões os críticos acusaram Jesus, dizendo: Tens demónio» (João 7:20; 8:48). Se cremos que Jesus deve ter bebido vinho alcoólico pelo facto de os Seus críticos O acusarem de ser um bebedor de vinho, devemos também crer que Ele tinha um espírito mau pelo facto de os Seus críticos O terem acusado de ter demónio. O absurdo de tal maneira de pensar mostra que o usar acusações de críticos não é uma base segura para definir ensinos bíblicos. Os resultados da vida de abnegação de Jesus falam por si mesmos.







O VINHO DA COMUNHÃO

Na Última Ceia, Cristo não só usou «vinho», mas mandou mesmo que ele fosse usado até ao fim do tempo, como memorial do Seu sangue redentor (ver Mateus 26:28, 29: Marcos 14:24, 25). Muitos crêem que o vinho usado na Última Ceia era alcoólico por 2 razões principais: (1) – a frase «fruto da vide» era alegadamente o equivalente funcional de vinho fermentado, e (2) - supõe-se que os Judeus usavam apenas vinho fermentado na Páscoa.
Estas crenças são desacreditadas por diversas considerações importantes.

A linguagem da Última Ceia é significativa. Em todos os 3 evangelhos sinópticos Jesus chama ao conteúdo do copo «o fruto da vide» (Mateus 26:29; Marcos 14:25; Lucas 22:18). A palavra «fruto», gennema, denota o que é produzido num estado natural, exactamente como é colhido. O vinho fermentado não é o «fruto da vide» natural mas o fruto não natural de fermentação e alteração. O historiador judeu Josefo, que era contemporâneo dos apóstolos, explicitamente chama aos 3 cachos espremidos numa taça pelo copeiro-mor de Faraó «o fruto da vide». 11 Vemos pois que a frase era usada para designar o suave e doce sumo da uva.
Se o copo na Última Ceia contivesse vinho alcoólico, dificilmente podia ter Cristo dito: «Bebei dele todos» (Mateus 26:27; cf. Marcos 14:23; Lucas 22:17), especialmente tendo em vista que um típico copo de vinho da Páscoa não continha apenas uma amostra, mas cerca de 4 decilitros 12. Cristo dificilmente podia ter mandado a «todos» os Seus discípulos ao longo dos séculos que bebessem do copo se ele continha vinho alcoólico. Há alguns para quem o álcool sob qualquer forma é prejudicial. Jovens, crianças que participam na mesa do Senhor não deviam certamente tocar em vinho. Há pessoas para quem o simples gosto ou cheiro do álcool desperta nelas o desejo ardente de álcool.
Podia Cristo, que nos ensinou a orar «não nos induzas à tentação», ter feito da Sua mesa comemorativa um lugar de irresistível tentação para alguns e de perigo para outros? O vinho da Ceia do Senhor nunca pode ser tomado livre e festivamente sempre que seja alcoólico e intoxicante.

A lei mosaica fornece outra prova em favor da natureza não fermentada do vinho da comunhão. A lei prescrevia durante a festa da Páscoa a exclusão de tudo quanto fosse fermentado (ver Êxodo 12:15; 13:6,7). O fermento, para Cristo, representava natureza e ensinos corruptos (ver Mateus 16:6). A coerência e beleza do copo como símbolo do Seu sangue derramado não pode ser adequadamente representada por vinho fermentado, que simboliza na Escritura a depravidade humana e a indignação divina.
Podemos conceber Cristo curvando-Se para abençoar em grata oração um copo contendo vinho alcoólico para o qual somos aconselhados nas Escrituras a nem sequer olhar (ver Provérbios 23:31)? Um copo que intoxica é um copo de maldição e não «o copo de bênção» (1 Coríntios 10:16); é o «copo de demónios» e não o «copo do Senhor» (1 Coríntios 10:21); é um copo que não pode adequadamente simbolizar o incorruptível e «precioso sangue de Cristo» (1 Pedro 1:18, 19). É pois razoável crer que o copo que Ele «abençoou» e deu aos Seus discípulos não continha qualquer coisa fermentada, proibida pela Escritura.

O testemunho histórico, tanto judeu como cristão apoia o uso do vinho não fermentado na Páscoa e na Ceia do Senhor. Luís Ginzberg (1873-1941), durante quase 40 anos presidente do departamento de Estudos Talmúdicos e Rabínicos no Seminário Teológico Judaico da América, apresenta uma análise exaustiva de referências talmúdicas ao uso do vinho nas cerimónias religiosas judaicas. Ele conclui a sua investigação dizendo: «Temos assim provado com base nas principais passagens tanto do Talmud Babilónico como do de Jerusalém que vinho não fermentado pode ser usado lekatehillah (opcionalmente) para o kiddush (a consagração de uma festa por um copo de vinho) e outras cerimónias religiosas fora do templo. 13
A conclusão de Ginzberg é confirmada por The Jewish Encyclopedia. Comentando a Última Ceia, diz: «Parece que na noite de 5ª feira na última semana da Sua vida, Jesus com os Seus discípulos entrou em Jerusalém para comer com eles a refeição da Páscoa na cidade sagrada; se assim foi, a hóstia e o vinho da missa ou o serviço da comunhão, então instituído por Ele como um memorial, devia ser o pão não fermentado e o vinho não fermentado do serviço Seder (ceia pascal)». 14
Assim parece razoável concluir que «o fruto da vide»’ que Jesus mandou usar como memorial do Seu sangue redentor não era fermentado. Nas Escrituras, a fermentação representa corrupção humana e indignação divina, mas o puro e não fermentado sumo da uva seria um adequado emblema do imaculado sangue de Cristo derramado para a remissão dos nossos pecados.

CONCLUSÃO

A pretensão de que Cristo usou e sancionou o uso de bebidas alcoólicas não tem pois razão de ser. A evidência da Escritura, da história e da linguagem indica que Jesus Se absteve de todas as substâncias intoxicantes e não sancionou o uso delas pelos Seus seguidores.

Samuele Bacchiocchi, professor de História Eclesiástica e de Teologia na Andrews University, Berrien Springs, Michigan, EUA in Revista Sinais dos Tempos, nº 37, 1991.
(Leia a parte 2 deste artigo em Leituras para a Vida, Links 1R, 24.11.2014)





REFERÊNCIAS:

1. Plínio, História Natural 23, 24, tra. ingl. de W.H.S.Jones, The Loeb Classical Library (Cmabridge, Massachusetts, 1961); 2. Plutarco, Symposiac 8,7; 3. Ver Sotah 48ª; também Mishna Sotah 9.11; 4. Citado em William Paton, Bible Wines: Laws of Fermentation (Oaklahoma City, s.d.), pág. 83; 5. Theological Dictionary of the New Testament, s. v. «Methe, methuo, methuskoni»; 6. «Deve observar-se», nota Leon C. Field, «que o adjectivo para descrever o vinho feito por Cristo, não é agathos, bom, simplesmente, mas Kalos, o que é moralmente excelente ou conveniente». (Oinos: A Discussion of the Bible Wine Question, New York, 1883, pág. 57); 7. Alexander Balman Bruce, «The Synoptic Gospels», in The Expositor's Greek Testament (Grand Rapids, 1956), pág. 500; 8. Columella, Sobre a Agricultura 12, 29; 9. Ernest Gordon, Christ, the Apostles, and Wine. na Exegetical Study (Philadelphia, 1947), pág. 20; 10. Ibid., pág. 21; 11. Josefo, Antiguidades dos Judeus 2, 5, 2; 12. Segundo J. B. Lighfoot, cada um dos quatro copos da Páscoa continha «não menos doq eu a quarta parte de um quarto de um hin, além da água misturada com ele» (The Temple servisse and the Prospect of the Temple, London, 1833, pág. 151). Um hin continha doze pints ingleses (pint = 0,568 l) de maneira que os quatro copos correspondiam a três quartos de um pint cada um; 13. Louis Ginzberg, «A Response to the Question Whether Unfermented Wine May Be Used in Jewish Ceremonies», American Jewish Year Book 1923, pág. 414; 14. The Jewish Encyclopedia, ed. de 1904, s.v. «Jesus».